Behring Breivik, o atirador norueguês, faz parte de uma organização que demonstra uma forte aversão ao multiculturalismo e sua política de tolerância global. O que há de errado no conceito de tolerância? Por que as políticas multiculturais tendem a igualar o conceito de aceitação e respeito ao conceito de tolerância? Tolerar é ter que suportar tacitamente. Eis aí uma atitude artificial que vem cobrando de todos os seres humanos um comportamento que nem todos podem assumir.
Quem vem acompanhando o atual quadro político da região mais fria da Europa, não vê os ataques ocorridos na Noruega com espanto e surpresa. O que tornou possível a ação de Breivik, um cidadão declaradamente anti-islâmico e que culpa a esquerda pela invasão árabe em seu país, é resultado direto da atual lógica da sociedade multicultural. Na própria Noruega, para se ter uma ideia, uma onda de estupros étnicos (Muslim rapes) vem chamando a atenção desde 2005. É possível constatar um aumento notável do número de ocorrências desse crime justificado etnicamente. Em terreno ocidental, norueguesas são punidas por não usarem véus. “Mulheres vestindo pouca roupa convidam homens a estuprá-las”, afirma o sheik libanês Faiz Mohammed.
Pois bem, os atentados na Noruega evidenciam um fenômeno que está presente, inclusive, entre nós brasileiros. O estresse das demandas nascidas da sociedade multicultural começa a dar seus primeiros sinais. É possível constatar que não são poucas as pessoas que têm saído em defesa do direito à “intolerância”. As políticas de tolerância têm se complicado em várias partes do mundo, suscitando uma série de reações de cunho nacionalista. Há no Brasil, assim como na Noruega, movimentos que desejam o distanciamento dos grupos estrangeiros considerados “invasores”. O fenômeno da xenofobia acaba de ganhar nova roupagem.
Nas últimas décadas, as antigas “pequenas esquerdas” explodiram com toda a força. Testemunhamos um tempo de fortes mudanças e de críticos movimentos tectônicos nas inflexíveis placas sociais. É possível afirmar que as antigas lutas das minorias não obedecem mais às discretas refregas localizadas. As minorias, doravante, são a maioria e não foi por boa vontade e aceitação do “outro como outro” que esses grupos, vítimas históricas de discriminação, desprezo elitista e preterição étnica, ganharam espaço. Impuseram-se politicamente, sindicalizando-se, protestando e usando, inclusive, de violência. As megalópoles atuais são enormes sítios do multiculturalismo. A convivência forçada de culturas antes incompatíveis conseguiu até agora não mais do que a instauração da necessidade de uma tolerância multicultural. O conceito de tolerância estava fadado a se fixar. Interessante notar que o fenômeno da tolerância evidencia um grandioso oximoro moral. De fato, testemunhamos um irônico paradoxo da democracia: os intolerantes não são tolerados, logo, a intolerância prevalece.
Alguns pensadores não enxergam o multiculturalismo com bons olhos. O cidadão, obnubilado pela tolerância repressiva do multiculturalismo, corre o risco de se tornar cego à possibilidade de que o outro pode simular o desejo de bondade, equidade, respeito e justiça, visando interesses próprios. O outro pode se esconder atrás de uma máscara e dissimular situações. O que num momento expressa harmonia e aceitação, pode resguardar um ressentimento discriminatório sem precedentes. Uma classe discriminada e diminuída, passando porventura à dominância, pode ser tão ou mais indiferente e intolerante. Afinal, não é privilégio de nenhum grupo social o ato discriminatório. Logo, segundo esse ideário, é artificial um discurso que a tudo e a todos compreende e aceita. O filósofo esloveno Slavoj Žižek publicou um livro chamado Em defesa da intolerância, onde afirma que “a natureza onicompreensiva da Universalidade Concreta pós-política, que a todos dá inclusão simbólica — essa visão e prática multiculturalista de ‘unidade na diferença’ (‘todos iguais, todos diferentes’) –, consente, como único modo de marcar a própria diferença, o gesto proto-sublimatório que eleva Outro contingente (por sua raça, seu sexo, sua religião…) à ‘Alteridade Absoluta’ da Coisa impossível, da ameaça posterior a nossa identidade: uma Coisa que deve ser aniquilada se quisermos sobreviver.”
O discurso das diferenças, o “catecismo contemporâneo da boa vontade”, vem configurando um conceito de tolerância que não é natural entre os seres humanos. Segundo Alain Badiou, “consciente ou inconscientemente, é em nome dessa configuração que nos é explicado hoje que a ética é ‘reconhecimento do outro’ (contra o racismo, que negaria este outro), ou ‘ética das diferenças’ (contra o nacionalismo substancialista, que queria a exclusão dos imigrantes, ou sexismo, que negaria o ser-feminino), o ‘multiculturalismo’ (contra a imposição de um modelo unificado de comportamento e de intelectualidade). Ou, simplesmente, a boa e velha ‘tolerância’, que consiste em não sentir-se ofendido com o fato de que outros pensam e atuam diferentemente de você.”
Aqueles que se espantaram em outubro do ano passado com as reações xenofóbicas de Mayara Petruso, foram testemunhas da ponta de um iceberg cujo corpo inteiro promete uma guerra global contra a obrigação de tolerar a diferença.
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Raphael Douglas
Raphael Douglas